A fala enquanto meio de comunicação e transformação interna, ocupa um papel central em diversas abordagens terapêuticas. No contexto da terapia integrativa, ela vai além de um simples instrumento de expressão; ela se torna uma via de acesso ao inconsciente e às camadas mais profundas da psique. Para ilustrar essa importância, gostaria de iniciar este artigo com um exemplo ocorrido enquanto escrevia este artigo.
Por repetidas vezes ao tentar utilizar a palavra “ferramenta” para expressar a fala como um meio terapêutico em uma sessão utilizei a palavra FerraMentE. Este neologismo inconsciente suscitou uma reflexão sobre o significado por trás da palavra: Ferra – ferro, ferrar, cutucar - e Mente – o pensamento, a mentira, a repressão. Poderíamos pensar que, ao tratarmos a fala como uma ferramenta terapêutica, ela teria a função de "cutucar" a mente, de "ferrar", ou até de provocar a resistência inconsciente que se manifesta como a "mentira" – uma forma de proteção da mente contra aquilo que é doloroso ou inaceitável. Para entender melhor o que estava por trás desta associação de palavras tive que fazer uma autoanálise do que estava me motivando a escrever de forma repetida esta palavra. Em uma posição de terapeuta e também de paciente, analiso e sou analisado; observo lapsos e emoções como também sou observado. Enquanto terapeuta a palavra ferramenta se trata da psicanálise (a ferramenta para tratar as pessoas), mas quando se transforma em FerraMente, a palavra ferramenta recebe uma nova significação. Enquanto terapeuta é a ferramenta que “Ferra”, “ferroa”, no sentido de cutucar, provocar a mente para o analisando poder fazer novas associações em seu pensamento; mas na posição de analisado este “ferroar” da mente se torna um lugar incômodo, pois as novas associações que aparecem em nosso consciente podem ser dolorosas.
Partindo para a análise da segunda parte da palavra, “mente”, assume muitas novas significações. Um paciente em análise pode “mentir” tanto para o terapeuta quanto para si e esta “mentira” dentro da sessão tomamos como um mecanismo de defesa da pessoa contra o sofrimento das novas associações, o que chamamos de resistência. Esta resistência é parte importante dentro do processo terapêutico, pois é o lugar onde se encontra nossas dificuldades e aquilo que nos impede de encarar situações desprazerosas, mas que necessitam ser trabalhadas. Desta forma FerraMente é uma condensação de ideias subjetivas que meu inconsciente transmitiu ao meu pensamento e no momento em que minha consciência estava desatenta em relação a minhas resistências, aproveitou da situação para transmitir estas informações, mostrando um desejo de mostrar a beleza da cura pela fala, mas que na realidade a fala em uma sessão terapêutica pode ser incômodo para a mente, e a beleza do resultado chega com o tempo.
Esse desvio linguístico, por mais simples que pareça, abre portas para uma compreensão mais profunda sobre a relação entre linguagem, mente e terapia. Veremos abaixo como esta situação descrita acima ocorre mais detalhadamente.
Escrita, fala exterior e fala interior
Tanto a escrita quanto a fala são ações exteriores em que é preciso elaborar um discurso, tentar escolher as melhores palavras, encaixar os melhores argumentos para poder explanar um pensamento. Ao escrevermos dispomos de mais tempo para pensar, criar e recriar frases na busca da melhor expressão do argumento, mas na fala exterior, quando falamos com alguém, o tempo é mais curto, necessitamos fazer abreviações, encurtar o caminho, suprimir certas partes pela dinâmica envolvida. Já a fala interior nos traz uma característica ainda mais incrível, um reducionismo da linguagem e das palavras, pois quando falamos silenciosamente conosco conhecemos já as pessoas e o assunto que queremos pensar e isso aumenta ainda mais a velocidade e dinâmica daquilo que está em nossa mente consciente. Cada uma destas formas de expressão da linguagem possui características distintas, mas todas são manifestações do pensamento.
1. A escrita é uma ação exterior, palavras que escolhemos colocar no papel, que nos permite um tempo mais amplo para pensar, revisar e buscar a melhor forma de expressar um conceito. Ela oferece espaço para a reflexão e a organização do pensamento.
2. A fala exterior, o diálogo, por sua vez, acontece em tempo real, com maior pressão para comunicar-se rapidamente. No processo de falar, somos levados a abreviar, simplificar ou até suprimir certas informações, para que o discurso se adapte ao ritmo da conversação. Esta necessidade de velocidade e muitas vezes de desatenção diminui nossas resistências e é o momento em que nosso inconsciente aproveita para transmitir informações pela fala e gerar lapsos de linguagens, trocas de palavras e letras e até mesmo a junção e criação de novas palavras.
3. A fala interior é ainda mais fascinante, pois se dá de maneira silenciosa, sem a necessidade de palavras completamente formadas. A nossa mente, nesse espaço, reduz as expressões linguísticas a blocos de significados, muitas vezes acessando conteúdos emocionais ou instintivos, sem a necessidade de uma construção consciente e organizada.
Essas diferentes formas de linguagem nos levam a questionar o que acontece quando falamos terapeuticamente. A nossa fala interior trabalha em blocos - fala que agrupa significados, como no exemplo de FerraMente, uma palavra formada por duas, apenas uma palavra (um bloco) mas cheio de significados. Este mecanismo usa o aparato ancestral e infantil de nossas mentes para se constituir; quando crianças nosso pensamento possui pouca resistência, pois nesta época existem poucos bloqueios, o que facilita a fala em blocos (cheia de significados) a se misturar com as memórias. Esta estrutura infantil e com poucas resitências promove com facilidade o que a criança mais busca por sua característica egoísta da idade, a realização de seus desejos. A fala interior por ser menos filtrada pela consciência se conecta com memórias e emoções e cria um fluxo de significados condensados e por vezes parecem desconexos – a palavra FerraMente no primeiro momento parece desconexa com o texto, mas agora já podemos observar o quão significativo ela foi. Esta condensação é uma característica fundamental do inconsciente e da nossa capacidade de transformar experiências e sentimentos em palavras. E são estas palavras descuidadas que são as mais importantes na fala terapêutica. Elas nos mostram em certo grau de análise a realização de desejos inconscientes.
Mecanismo da fala interior e emoções
Durante o dia direcionamos nossa atenção ao fluxo de pensamentos de nossas mentes para transformar em fala interior ou exterior (diálogo, monólogo). Estas são formas de organizar o pensamento, mas também um meio de expressão de emoções. Lev Vigotski (2008), célebre linguista russo, propôs que o pensamento e a fala possuem origens distintas, mas se cruzam para formar um todo, e que, à medida que o pensamento se torna linguagem, ele é influenciado por fatores afetivos e volitivos (de nossa vontade, desejo). Neste momento o pensamento começa a se transformar em linguagem interior através de nossas vontades, afetos, emoções, resistências internas que influenciam nossa consciência na escolha das palavras e algumas delas frequentemente evitamos falar internamente conosco ou externamente com outras pessoas certas informações desconfortáveis e dolorosas demais sobre nós mesmos, ou aquilo que pensamos de outras pessoas e situaçoes que não queremos expor tão abertamente.
Se acompanharam meu raciocínio até aqui quero lhes dizer que quando falamos em uma sessão de terapia a dinâmica da fala se transforma. Inicialmente, utilizamos toda nossa força consciente para articular nossas ideias de maneira controlada, transformando nosso pensamento em palavras muito bem escolhidas. Mas, à medida que o processo terapêutico avança, a mente do paciente se expressa com mais liberdade, resgatando padrões de fala interior mais primitivos e espontâneos, típicos da infância, de quando a resistência era menor e os pensamentos se organizavam mais livremente.
Essa liberdade de expressão interior em blocos cheios de informações, conciso, capaz de condensar significados abre espaço para que o inconsciente se manifeste de maneira mais direta. É neste espaço que ocorrem atos falhos, os lapsos verbais, falas descuidadas, as trocas de palavras e até mesmo neologismos como a expressão “FerraMentE”. Tais manifestações podem ser consideradas erros de linguagem em nossa fala do dia a dia, mas na verdade são formas de comunicação do inconsciente, palavras influenciadas por nosso contexto (memórias afetivas do passadas e do presente) que revelam aspectos ocultos de nossos sentimentos, inquietações, traumas e resistências.
A Importância da Fala na Terapia Integrativa
A fala, portanto, ocupa um lugar fundamental na terapia integrativa, porque é através dela que o paciente consegue trazer para o mundo externo aquilo que está dentro e muitas vezes esquecido ou reprimido. Ao verbalizar sentimentos, pensamentos e lembranças, o paciente dá forma ao que antes estava nebuloso e inconsciente. Nesse processo, o terapeuta atua como um facilitador, criando um ambiente seguro onde o paciente possa se expressar livremente, sem medo de julgamento ou repressão.
Para ilustrar mais uma vez esta situação tomaremos o exemplo de um paciente de 40 anos que, em terapia, frequentemente usava a palavra "Sabugosa" ao tentar lembrar o nome de plantas “suculentas”. Essa palavra, uma junção de "sabugo" (algo áspero e seco) e "sebosa" (algo pegajoso e incômodo), parecia desconexa, mas, à medida que a terapia avançava, o paciente começou a associar essa palavra a uma pessoa de sua vida – alguém próximo a ele que tinha características ásperas e um caráter "seboso", no sentido de manipulador ou moralmente questionável. A palavra “Sabugosa” poderia ter se conectado ao personagem Visconde de Sabugosa das histórias de Monteiro Lobato e tomar outros significados, mas a mente deste paciente fez outras associações. Quando conseguiu entender em terapia que ele havia condensado duas palavras significativas para um objeto, relatou ter passado por uma circunstância pessoal onde uma pessoa próxima era amante destas plantas e através da fala, veio à tona um reflexo de emoções e experiências ocultas na sua mente consciente que o fez lembrar da aspereza, secura e incômodo da situação. Sabugosa e FerraMente são dois exemplos em situações diferentes, um em fala terapêutica e outro na escrita de lapsos de linguagem cheios de significados e que podem dizer muito sobre nós e nos ajudar a viver melhor.
Conclusão
A fala, na terapia integrativa, é mais do que uma ferramenta de comunicação; ela é um elo entre o consciente e o inconsciente, uma forma de acessar camadas profundas da psique. Dito isto, criar a palavra FerraMentE exprime de alguma forma algo subjetivo que usou estes mecanismos para se expressar e dizer mais um pouco a mim, sobre o ato de pensar e escrever sobre este assunto.
Através da fala, cada paciente pode dar voz aos seus afetos, emoções e memórias, muitas vezes obscurecidas pela resistência interna. Só podemos entender o outro (enquanto terapeutas e companheiros de jornada) quando o eu e o outro consegue externalizar e transformar seus afetos, vontades e desejos em palavras. A teoria de Vigotski e a Psicanálise nos ajuda a entender que o pensamento e a linguagem são o que sentimos e desejamos. A fala, em suas diversas formas – exterior e interior – é a chave para a transformação terapêutica, permitindo o indivíduo se reconectar com partes de si mesmo de um mundo uma vez vivido e esquecido, por negligência ou repressão, mas que pode ser transformado e ajudar a avançar no processo de cura.
Bibliografia Consultada
- Freud, S. Psicopatologia da Vida Cotidiana. Companhia das Letras: São Paulo, 2021.
- Vigotski, L. S. Pensamento e Linguagem. Martins Fontes: São Paulo, 2008.
- Wittgenstein, L. Investigações Filosóficas. Nova Cultural: São Paulo, 1999.
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